É em certas tardes de agitação discreta que nos vêm os impulsos mais fulgorosos. Não se trata, pois, de morrer — afinal, vivemos todos os dias, aproveitamos intensmente cada crepúsculo de nossas vidas. Trata-se, simplesmente, de pensar. Não só um pensar leve, solene, como aquele que nos acompanha nas horas de sombra mais curta. A reflexão que daí advém é, se não benigna, ao menos engraçada — mas pode-se sempre afasta-la com um gesto de mão, com o riso seguro de quem não tem nada a perder. Aqui, ao contrário, cada pensar é um nascimento, um nascimento trágico cujos pais são os nossas proprias memórias cristalizadas. A introspecção é acompanhada, a cada passo, de uma auto-iluminação. Tudo se passa como num estranho ritual de invocação, onde para cada pensamento parido modifica-se e a uma parcela de si. Poder-se-ia mesmo rastrear cada pensamento em suas marcas visíveis no corpo do sujeito, ver em cada sorriso inscrito o pensamento que lhe deu origem. Pensar é, de fato, alegrar-se, como quem sente de uma amizade, como quem sente o amor de uma afecção — como quem aproveita a vida.
O pensar pode vir a ser, como muitos o crêem, a expressão de uma alma imortal, que guardaria assim a promessa sempre consoladora de uma origem cantada ou um futuro radiante, música que brilha numa harmonia celeste e eternamente apaziguadora. O pensar está sempre atrelado ao corpo. Um corpo que, ao contrário dos músculos atléticos exibidos pelas bestas louras da primeira manhã, traz consigo os sinais de sua história, de sua origem, do sussurro secreto do sentimento que ressoa com cada batida desse coração prestes a ser consumado pelo último dos prazeres. O corpo que abriga o pensar é sempre autônomo, erigido do peso de um passado infinito, de uma totalidade simbólica erigida sobre ombros de gigantes. É um volume pulverizante, fruto desse processo de perpétua pulverização que é o pensar. Se a genealogia é a exibição pública das marcas indeléveis da história sobre os corpos, a fisiologia, por sua vez, deve ser o rastreamento desse movimento duplo que caracteriza o pensar. A genealogia pode até ser um retorno às máscaras, uma história concebida como um “carnaval organizado”. Mas a fisiologia vem para arrancar todas as máscaras e revelar, sob a superfície fina do possível envelhecimento aparente, não os rostos dos indivíduos, mas as cabeças jovens de nossos corpos. Parodiando Foucault, a fisiologia deve mostrar o pensamento orientando o corpo e o corpo inteiramente marcado de pensar.
Posto esses termos, o que pode então ser a filosofia, esse estranho amor a uma arte de desenhar, sobre as nuances de nossos corpos, figuras que nos marcam tanto mais profundamente, dado que nos atingem de modo mais insidioso e sutil? O filósofo é, sem dúvida, um ser mágico — o senso comum de todas as eras o atesta. Mas de que magia ele é capaz? Devemos, antes de mais nada, afastar a sombra do moralismo. O moralismo, entidade complexa sobre muitos aspectos, está sempre preso a pelo menos duas chaves: a instância contratual, enquanto elemento de ênfase da severidade da lei social, e a instância psicológica, enquanto elemento que permite, pela própria severidade da biologia, torcê-la ao mesmo tempo em que a obedece. O moralista realmente sofre sob o peso de uma lei cada vez mais absoluta, mas apenas porque há, no horizonte, a promessa de um prazer inicialmente ensinado. E, de fato, é justamente essa bem humorada porem doentia inversão — aplicação prazerosa de uma lei que deveria causar sofrimento — que melhor caracteriza as fantasias moralistas. O filósofo, por sua vez, rejeita toda a promessa hedonista desses contratos, afasta-se, e para sempre, do sopro gélido da lei que nos deixa insensíveis a todo ardor e sofrer. À frieza contratual do moralista, o filósofo contrapõe a exaltação de suas paixões, de seu ethos. O moralismo é a arte de se extrair prazer de nosso sofrimento; a filosofia é a arte de se extrair mais prazer de nosso conhecimento. Ela se instala na dobra do pensamento sobre si mesmo. Muito já foi dito sobre a filosofia ser sempre um pensar crítico. A crítica é sempre um pensar sobre o pensar, meta-pensar que eleva o controle sobre nossas vidas e escolhas. A filosofia, enquanto amor ao pensar, é, pois, o processo de redobrar-se o conhecimento.
Já se afirmou, certa vez, que nós somos hábitos, nada mais que hábitos, simplesmente o hábito de dizer Eu. Alguns, talvez, prefeririam afirmar que tais hábitos são, na realidade, vícios. Seríamos, assim, o simples vício de ser nós mesmos. É uma correção injusta. Todo vício, porém, nos lembra que há um problema para o qual ele é uma resposta. Existem vícios inatos, pouco transcendentais. Adquire-se sempre um vício como uma resposta a uma circunstância dada em nossa história de vida ou de desenvolvimento biológico. E, se o pensar pode ser um tesão, a filosofia deve ser a exploração desse tesão, a tentativa sempre renovada de esgotá-lo, de levá-lo a cabo. O vício arruína o corpo; a exploração do vício é um processo de dilaceração potencializado. Dissolução do eu, esfacelamento do corpo. Em oposição a isso é Dionísio, deus da alegria e do vinho, o deus patrono de toda filosofia. Dionísio, lembremos, é a alegria encarnada, produto da carne satisfeita. Todo filosofar é, assim, sacrifício a Dionísio, adoração perpétua da parte de si que não se rende a nenhuma falsa promessa e a nenhum desencanto. O filósofo é também um ser privilegiado.